Mamma África
Daiane dos Santos: 40% européia. Neguinho da Beija Flor: 67% europeu. Djavan: 30% europeu. Os números, divulgados com um bocado de alarde pela rede BBC Brasil ao longo da semana que passou, vieram de um teste de ancestralidade conduzido por Sergio Danilo Pena, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos principais geneticistas do Brasil. Como a idéia do teste de DNA, feito com nove celebridades negras brasileiras, era redescobrir as origens africanas dos famosos, houve quem ficasse com um certo gosto de cabo de guarda-chuva na boca. Falou-se até em boicote “da elite científica” ao recém-criado sistema de cotas nas universidades. À primeira vista, circular com uma camiseta levando os dizeres “100% Negro” no Brasil virou uma impossibilidade lógica.
Por mais interessantes que os resultados tenham sido, porém, colocar a questão em termos de desafio às cotas ou orgulho racial equivale a se render a uma falácia. Para começo de conversa, se o polêmico “100% Negro” fosse trocado por “100% Africano”, a lógica ditaria que cada pessoa deste país – aliás, deste planeta – vestisse tal camisa.
Parece maluco, mas é a mais pura verdade. A explosão de estudos sobre as raízes genéticas da humanidade nas últimas décadas tem traçado um quadro surpreendente sobre como as populações estão aparentadas umas às outras. Nenhum conceito estanque e fechado de “raça” é capaz de ficar em pé diante desses dados, embora eles também ressaltem que existem de fato algumas particularidades únicas dos povos de cada continente. Acima de tudo, eles não deixam muita dúvida quanto ao fato de que até os suecos ou esquimós são profundamente africanos.
Para entender o porquê dessa afirmação aparentemente exagerada, é preciso recuar até 100 mil anos no passado, uma época em que a nossa espécie, Homo sapiens, já existia – e quase deixou de existir. Uma herança dessa época é que as variações presentes hoje no DNA dos vários povos são absurdamente pequenas: na verdade, quaisquer dois seres humanos escolhidos ao acaso são, em média, duas vezes mais parecidos geneticamente entre si do que qualquer par de chimpanzés, nossos primos evolutivos mais próximos.
No entanto (para azar do planeta), nós somos bem mais numerosos do que chimpanzés. O único jeito de uma espécie com 6 bilhões de membros ser tão uniforme é fazer com que seus membros descendam de um número reduzido de ancestrais recentes. (Imagine dois casais de avós cujos filhos se casaram entre si e lhes deram uns 30 netos: apesar da explosão populacional, todos esses netos continuam sendo primos de primeiro grau – portanto, muito parecidos.) O termo técnico para isso é “gargalo populacional”. É possível estimar que, há 100 mil anos, a espécie humana contava com apenas uns 2.000 adultos em idade de se reproduzir, sendo tão rara quanto os gorilas são hoje. É desse punhado de “Adões” e “Evas”, provavelmente espalhados pelo leste e pelo sul da África, que descendemos todos nós.
Por sorte ou por competência, atravessamos o gargalo. A partir de uns 60 mil anos atrás, passamos a nos estabelecer em definitivo em outras partes do mundo, provavelmente absorvendo pequenas frações da herança genética de outras populações humanas primitivas, como os neandertais da Europa. Acontece, porém, que quase 100 mil anos de nossa história como espécie já tinham sido passados no interior da África antes que finalmente fosse dado o Grande Salto para Fora do continente.
Em biologia, o tempo é tudo. Os incontáveis milênios de evolução exclusivamente africana permitiram uma diferenciação muito maior das populações que vivem no continente. E o resultado é que, se a disputa por quem tem mais diversidade genética no planeta fosse uma espécie de Copa do Mundo por continentes, a final já estaria definida antes que a bola rolasse: África contra... a rapa. E o resto do planeta perderia de goleada.
Não é preciso nem descer às minúcias do DNA pra bater o martelo em relação a isso. Basta olhar para o rosto e para a pele dos habitantes de cada continente. Das seis grandes divisões “raciais” (por favor, deixe o termo recheado com o maior número possível de aspas) nas quais podemos repartir a humanidade, nada menos que cinco vivem na África moderna.
“Hã?”, balbuciará você. Calma. Conte comigo. Brancos: presentes. (Egípcios, líbios, marroquinos e outros norte-africanos, pra ser mais exato.). Asiáticos: presentes. (A maior parte dos habitantes de Madagascar, na África Oriental, descende de indonésios que chegaram à ilha há menos de 2.000 anos.) Negros: claro, presentes, nem vou me estender a respeito. De quebra, dois ramos da humanidade, com histórias antiqüíssimas e sem nenhum análogo fora da região, são exclusivos do continente africano. São os pigmeus – pequenos, de pele mais clara que os negros “verdadeiros” e unicamente adaptados à vida na floresta tropical – e os khoisan do sul da África (donos de uma estranha pele amarelada e olhos “puxados”, combinados com um cabelo mais crespo do que o de qualquer negro.)
Vamos encarar os fatos: perto dessa diversidade, todo o resto de nós não passa de uma nota de rodapé evolutiva, um bando de arrivistas. A lingüística traz outra prova irônica disso, a qual deveria ser capaz de acabar com qualquer orgulho europeu diante do “atraso” africano. Três idiomas que ajudaram a construir os pilares da civilização ocidental – o hebraico, o aramaico e o árabe, as línguas sagradas da Bíblia e do Corão – pertencem à família lingüística semita. (O nome vem de Sem, um dos filhos de Noé, segundo a Bíblia.) Acontece que a distribuição geográfica dos idiomas semíticos, bem como a dos parentes mais próximos dessa família, indica uma origem africana muito antiga e uma migração posterior para o Oriente Médio. Sem, pelo visto, viveu na Etiópia.
Levando tudo isso em mente, o que dizer então das diferenças aparentemente tão berrantes entre brancos e negros, negros e asiáticos? Primeiro, que elas correspondem a uma fração relativamente diminuta da biblioteca biológica que é o nosso DNA. Das dezenas de milhares de genes que carregamos, talvez apenas algumas dezenas deles sejam suficientes para criar toda a paleta de olhos azuis e castanhos, peles escuras ou rosadas, cabelos lisos ou crespos que conhecemos.
Mais importante ainda, quando as aparências são deixadas de lado e descemos ao nível dos genes, fica bastante claro que as diferenças entre populações são, em muitos casos, uma questão de grau, e não de diferenciação absoluta: as freqüências de determinada variante de um gene, por exemplo, não são de forma alguma 100% do lado da fronteira onde há uma “raça” e 0% do outro, onde vive outra “raça”: na maioria dos casos, há uma gradação suave que indica, quase sempre, história compartilhada e miscigenação.
Isso não significa que as diferenças não existam, ou sejam totalmente irrelevantes. Muitas populações humanas foram separadas de seus vizinhos por barreiras naturais ou sociais, enfrentando ambientes únicos, com desafios próprios. A doença conhecida como anemia falciforme só afeta mais as pessoas de origem africana porque o gene que a causa também tem um efeito benéfico: protege-os da malária, um problema que não afeta povos de regiões mais frias. Por outro lado, os povos da Europa Ocidental conseguem digerir leite fresco quando adultos graças a uma mutação muito rara entre os japoneses e chineses – isso porque os europeus foram pioneiros em criar vacas leiteiras, e seu organismo tinha todo o interesse em explorar esse recurso. Diferenças desse tipo mostram como algumas dezenas de milhares de anos de história deram um sabor próprio à diversidade humana de cada continente.
Nada do que sabemos hoje indica que a velha e nefasta associação entre a genética e a capacidade inata das pessoas de cada “raça” seja mais do que história para boi dormir. É claro que o trabalho científico é por definição provisório, e uma descoberta desse tipo talvez apareça com uma compreensão mais profunda do genoma humano.
A pergunta é: será que deveríamos temer que isso aconteça? A resposta racional deveria ser “não”. Se é impossível negar que nossa bagagem inata tem um impacto sobre a forma como pensamos e nos comportamos, também está claro que nosso trunfo como espécie é uma plasticidade fantástica. Os netos de agricultores pisaram na Lua; indígenas cujos pais viviam na Idade da Pedra pilotam helicópteros. Debaixo do verniz da nossa pele, o que transparece mesmo é a nossa potencialidade estonteante – e a nossa unidade como espécie.
Reinaldo José Lopes
sábado, junho 02, 2007
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